Antes dos 14 anos já contava 90
fraturas. Mas não há adversidade que Mafalda Ribeiro não transponha,
inteira. Escritora e oradora motivacional, não pretende uma estátua:
para ela, importante é saber que marcou um dia, uma hora, «um mísero
segundo» da vida de alguém.
Ela não vai durar as primeiras duas horas.» «Ela não vai durar uma
semana.» «Ela não vai durar um mês.» «Quando deixar o hospital e a mãe a
levar para casa morre-lhe no caminho.» «Ela não vai chegar à idade
pré-escolar.» «Ela não vai aguentar a primeira constipação.» «Ela
nunca mais morre.»
«A minha vida começou assim», diz Mafalda Ribeiro. O humor
desconcertante é nota forte da personalidade desta mulher. Com 31 anos,
descreve a osteogénese imperfeita – a dela, tipo II, é particularmente
violenta e a maioria não sobrevive ao parto – e a dor física permanente
sem sinais de lamechice. E recorda um sem-número de fraturas ósseas –
90 apenas nos primeiros 14 anos de vida – e as condicionantes ditadas
pela doença, sem apelo à comoção.
O sorriso, herança da mãe, franco, rasgado, delineado a vermelho,
cor do bâton de que raramente abdica, marca a primeira imagem. E
impõe-se à cadeira de rodas, à imperfeição, ao defeito que, no caso da
Mafalda, é feitio. Feitio físico, ponto forte desta história de vida
que, contudo, não a determina em absoluto. «Em regra, tratamos quem tem a
deficiência como coitadinho ou herói. Eu sou, quero ser, a linha que
separa as duas coisas. Quero mostrar que uma cadeira de rodas não tem
de ser o fim do mundo. É, antes, uma nova visão do mundo. O que é
diferente, estranho ou esquisito não é necessariamente mau. É diferente.
Ponto. Tive a sorte de não me ver de repente numa cadeira de rodas, de
não ter de passar por uma integração – nasci assim, sempre me conheci
assim. Para mim, estranho seria se começasse agora a andar.»
Um testemunho com prova – filha única, podia ter-se conformado à
pensão de invalidez e ao conforto da casa paterna. Não: aos 18 anos já
ganhava dinheiro como rececionista na Junta de Freguesia de Calhandriz
(Vila Franca de Xira), de onde é natural; aos 18, ainda antes da
licenciatura em Jornalismo, trabalhava, profissional encartada, no
jornal Vida Ribatejana; aos 21 era técnica de comunicação na Valorsul,
empresa responsável pela valorização e tratamento de resíduos urbanos
(contratada para um estágio de seis meses, ficou oito anos); antes dos
30 comprava casa e carro, como chama à cadeira de rodas. «Pedi
empréstimos bancários, sozinha. A cadeira elétrica custou 15 mil euros e
passei a ter prestações mensais da casa.»
Hoje, aos 31 anos, passa uma fase sabática. Em 2008, publicou o primeiro livro – Mafaldisses, Crónica sobre Rodas
–, na Páscoa de 2015 sairá o segundo, relatos de uma viagem de vida, a
Israel, que lhe encheu os dias. Prepara igualmente um livro infantil e,
ainda mais importante, um investimento em força numa atividade que até
aqui fora apenas um apontamento, embora bem-sucedido, no seu currículo: a
comunicação motivacional.
A proliferação de oradores nessa área é um senão, acredita: «Estamos a
viver o fenómeno dos oradores motivacionais, muitos deles papagaios e
eu, confesso, sou pouco de modas e de carneiradas. Nem quero debitar os
sete passos para a felicidade até porque nem dou passos.» Abre o
sorriso e acrescenta: «Vou provar que mais pode ser bem feito e
genuíno. Percebi que é esse o meu caminho.»
A certeza ganhou-a em 2011, «o ano mais marcante da minha vida». O
ano em que planeou a tão desejada viagem a Israel e comprou finalmente a
igualmente desejada casa. Mas também o ano trágico em que perdeu a
mãe, num acidente de carro, às quatro da tarde de uma sexta-feira de
junho, exatamente defronte da empresa onde trabalhava. Mafalda foi a
primeira a saber. «Fiquei sem chão, sem nada. Perdi a minha mãe e a
pessoa que cuidava de mim.» Contudo, «atriz sem guião», coube-lhe dar a
notícia ao pai e aos amigos, consolar a todos. «Durante um ano vivi
como super-Mafalda, recusei a baixa contínua porque achava uma
ingratidão para com a vida abdicar do trabalho que tinha.» Depois
percebeu que estava a castigar-se a si própria. «A empresa representava
o meu cenário de guerra.» Ali soubera da morte da mãe, ali dera a
notícia ao pai. Era, de facto, um «cenário de guerra», a imagem
permanente do acidente brutal. «A vida tinha-me imposto a maior
mudança. Tinha de nascer ali uma nova Mafalda.» Mais paciente, mais
calma e sobretudo consciente de que «não posso fingir que a minha
passagem pela terra é banal». Deixou então a Valorsul para se dedicar a
tempo inteiro «a prestar testemunho de vida e a servir de inspiração a
outros».
A osteogénese não trouxe ressentimento à cristã evangélica. Nunca
sentiu revolta, garante, recorrendo de novo ao humor: «Não tenho um
corpo 86,60,86, mas com 16 anos revoltava-me mais uma borbulha que
aparecesse, estragava-me a noite na discoteca.» Mafalda cuida-se, gosta
do que vê ao espelho. «Adoro ser mulher: aos 14 anos pintei pela
primeira vez o cabelo» – foi loura, ruiva, usou madeixas. «Na roupa,
passei por todas as fases», da camisa de flanela aos quadrados ao preto
integral. Sapatos, feitos à medida, tal como parte da roupa, são, em
regra, de salto alto. «Há na minha aparência muito de que posso gostar,
que posso melhorar e por isso faz toda diferença sair à rua bem
arranjada, a sentir-me bem neste corpo, diferente, mas que é o meu.»
Compõe os óculos de massa, imagem de marca, saboreia o café e sorri do
alto de 97 centímetros (e 22 quilos).
Nunca admitiu a si própria que «certos olhares» lhe estragassem os
dias. Mas eles existem. «Até aceito que me abordem na rua com perguntas
sobre a doença. Não há muitas Mafaldinhas por aí e portanto tento
compreender a curiosidade alheia, mas não aceito que passem uma
determinada linha – a do julgamento.» Impulsiva e frontal, tenta
conter-se. Conteve-se no momento em que presenciou um dos gestos mais
duros – o adulto tapa os olhos da criança para esta não ver – ou
enfrentou a mais cruel das frases: «Mais valia que Deus a levasse.» Com
tanto de «acelerada como de distraída», Mafalda faz delete do que – e
de quem – não interessa. Guarda «o olhar pequeno», detalhado e a
memória de elefante para o que conta.
«Ironicamente as minhas memórias mais antigas não são de mim a pensar
que não era igual aos outros meninos. Mas sim de aos 3 anos
impressionar os adultos dizendo que já sabia ler. Ainda por cima tendo
uma aparência de bebé.» A verdade é que decorava os livros com
obsessão, sabendo mesmo a altura certa de virar a página. «As pessoas
viam–me sempre com um osso partido e eu queria que, em vez de dizerem
“que coitadinha”, dissessem “que inteligente”. Sempre gostei de
desconstruir esquemas.»
Mafalda nasceu na Maternidade Alfredo da Costa no ano de 1983, com
apenas 36 centímetros e 1,950 quilos. Tinha as duas pernas partidas,
tão-só resultado dos movimentos da gestação. Nos primeiros seis meses
sobreviveu a duas pneumonias, mas «quanto mais diziam que eu ia morrer
mais eu teimava em ficar». Viveu sempre na Freguesia de Calhandriz,
muito protegida pela família e obrigada pela osteogénese a longos
períodos de imobilização, foi uma criança «tagarela, muito vivaça,
nada tímida, atenta ao pormenor e pouco dada a fantasias». Tocar piano
era uma das atividades favoritas, a ponto de lhe vaticinarem uma
carreira de pianista. Também pensou ser cabeleireira. Já no liceu,
escolheu definitivamente o jornalismo e a escrita. «Sempre escrevi.
Escrevia sobre o que eu via. Não me lembro de ter composições sobre o
tema “e se eu andasse?”. Aliás nem me lembro de sonhar com isso. Uma
vez, já adulta, sim, lembro-me de conseguir andar no meio de pessoas
enormes. Não acordei feliz. Não foi uma boa sensação.»
Fazer das fraquezas forças evitando a arrogância é um do seus
cuidados. «Nem isso nem ser egoísta, apesar de ter sido filha única e
superprotegida.» Em Alverca, no ciclo e na secundária, a aluna
excelente, «particularmente teimosa», empenhada na associação de
estudantes, fugia à funcionária que a acompanhava em permanência para
comparecer a encontros amorosos furtivos: «Nessa matéria fui muito
precoce e, como no resto, proativa. Tive o meu primeiro namorado na
escola primária e demos o primeiro beijo a sacudir os apagadores, atrás
da escola.» Por esses dias a mãe encontrou na mochila da filha a nota:
«Abel, azeitas (com z) casar comigo?» Seguiam-se as hipóteses sim, não,
talvez. Pouco dada a sínteses, conta: «Nunca me preocupei com as
minhas paixões nem nunca tive medo da reação deles. Nunca pensei que
não gostariam de mim por ser deficiente. Nunca foram relações
duradouras, mas a verdade é que também tenho pouca paciência.» Já na
faculdade, quando pensava no futuro, imaginava-se «uma profissional
realizada, a viver sozinha solteira, e a viajar muito».
Nessa altura percebeu que no jornalismo estaria confinada ao espaço
da redação. «E de vez em quando é preciso manter as rodas no chão.» Por
isso, aceitou sem reservas o convite para integrar os quadros da
Valorsul. «Não sei o que é procurar emprego ou enviar currículos. Ao
longo de sete anos vivi uma das fases mais criativas do meu percurso
naquela empresa.» Até ao dia fatal de 2011.
Mas também há dias perfeitos: «Um almoço numa mesa de risadas, com
muito sol, um livro. O que me pode fazer desistir? Nada. É que eu gosto
mesmo de estar cá. Quero ser uma ponte, ponte é o meu nome do meio,
quero passar de audiências de 200 para 20 mil pessoas. Não quero deixar
legado, não quero estátuas: quero marcar as pessoas que cá estão. E se
marcar a vida de alguém nem que seja por um mísero segundo já valeu a
pena.»
Fonte: noticiasmagazine
Tive o grato prazer de conhecer pessoalmente a Mafalda Ribeiro, e ouvir a sua MARAVILHOSA história! Foi no palco do Teatro da Trindade em Lisboa, que sentimos a sua garra, rimos e chorámos com as suas palavras, e no final , mulher de 75 anos de idade, cheguei à conclusão que tenho passado pela vida sem a viver! Obrigada Mafalda!
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